Na prática, o que vem aí, com a primeira reedição integral da obra de Luiz Gonzaga pela multinacional Sony Music, é um verdadeiro tesouro musical, um conjunto de raízes crucial para o entendimento do que se possa chamar forró, baião, xote, xaxado, folk nordestino ou que nome vier. No decorrer de cinco décadas, o cantor de “Asa Branca” viveu várias fases artísticas, cada qual mais assombrosa em termos artístícos.

Entre 1941 e o advento de “Asa Branca” (1947), já estabelecido no Rio de Janeiro, ele teve de se contentar inicialmente com os temas instrumentais (não se considerava que, mulato sertanejo cheio de acento nordestino, pudesse ser um cantor viável) ou com pequenas brasilidades cantadas em coral. Do sucesso de “Asa Branca” e “Baião” (1949) em adiante, até o triunfo do formato LP como hegemônico (na entrada dos anos 1960), forjou uma identidade particularíssima – inclusive nos trajes cangaceiros, ostensivamente nordestinos. Mais que isso, viabilizou tal identidade, antes rejeitada, como formato pop atraente para brasileiros de quaisquer regiões.

Vieram “Juazeiro”, “Légua Tirana” (1949), “Assum Preto”, “Boiadeiro”, “Qui Nem Jiló”, “Respeita Januário”, “A Volta da Asa Branca (1950), “Baião da Penha”, “Olha pro Céu”, “Sabiá” (1951), “Acauã”, “Paraíba”, “Pau de Arara” (1952), “ABC do Sertão”, “A Vida do Viajante”, “Vozes da Seca”, “O Xote das Meninas” (1953), “Noites Brasileiras” (1954), “Riacho do Navio” (1955), “A Feira de Caruaru” (1957)… O cancioneiro fincado por Gonzaga e parceiros está impregnado na música popular de todo o Brasil, e lança tentáculos para fora, como no atual sucesso maciço da sanfona brasileira de Michel Teló e Gusttavo Lima no chamado Primeiro Mundo.

O final dos anos 1950 trouxe, junto com a ameaça modernizadora (e elitizadora) da bossa nova, a consolidação paulatina de um novo formato industrial, de colecionar diversas faixas em LPs e miniLPs. O “rei do baião” iniciou com uma coletânea de sucessos antigos, A História do Nordeste na Voz de Luiz Gonzaga (1955), mas seguiu cravando (menos) sucessos extraídos de LPs: “O Cheiro da Carolina”, “Derramaro o Gai” (1956), “Forró no Escuro” (1957), “Dezessete e Setecentos”, “Xamego” (1958), “Numa Sala de Reboco”, “A Triste Partida” (1964), “Oia Eu Aqui de Novo” (1967), “O Jumento É Nosso Irmão” (1968)

Em 1967, concebeu a primeira e mais impressionante (quase-)confissão de cansaço, “Hora do Adeus”: “O meu cabelo já começa prateando/ mas a sanfona ainda não desafinou/ a minha voz, vocês reparem eu cantando, que é a mesma voz de quando/ meu reinado começou”. O tropicalista Caetano Veloso extrairia dali o refrão, para incluir em seu LP Transa (1972) uma mensagem de incentivo ao pai fundador deixado para trás: “Eu agradeço ao povo brasileiro/ norte, centro, sul, inteiro/ onde reinou o baião”.

A década seguinte é a menos explorada nos relançamentos operados pela BMG, mas escondem pedaço colossal da história oculta da moderna MPB. Em LPs como Sertão 70 (1970), O Canto Jovem de Luiz Gonzaga (1971) e Aquilo Bom (1972), ele renovava o repertório tecendo versões forrozeiras para sucessos dos repertórios de Caetano (“No Dia Que Eu Vim-Me Embora”), Dori Caymmi (“O Cantador”), Edu Lobo (“Cirandeiro”), Gilberto Gil (“Procissão”), Roberto Carlos (“Meu Pequeno Cachoeiro”) e do filho Gonzaguinha (“Festa”, “Morena”)

Em 1973 e 1974, gravou seus dois únicos discos fora da RCA (pela Odeon), os excelentes Luiz Gonzaga (com o clássico “O Fole Roncou”) e Daquele Jeito. A Sony afirma que pretende negociar com a também multinacional EMI, proprietária do acervo Odeon, a inclusão dos dois títulos na reedição integral.

São desse período também compactos avulsos de que a Sony não há de se esquecer, como o que contém a formidável suíte “Samarica Parteira” (1974) e aquele em que o direitista Gonzagão regrava, de modo grandiloquente, em 1980, o hino proscrito de esquerda “Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores” (1968), de Geraldo Vandré. Nessa época, 13 de dezembro já era mais que apenas o dia de nascimento do “rei”: se transformara, também, em aniversário da decretação do AI-5, pela ditadura à qual ele sempre manifestou apoio.

Os anos 1980, já razoavelmente contemplados por relançamentos anteriores, foram marcados pelos encontros musicais em LP com o filho Gonzaguinha (foto) e com o discípulo Fagner e por uma forma verdadeira, definitiva, de cansaco – a da idade. Mesmo assim, em 1989, ano de sua morte, Gonzagão lançou nada menos que quatro LPs, um deles o instrumental Forrobodó Cigano, de contato saudoso, em tempo de despedida, com as próprias origens nômades e mestiças.

Com obra tamanha, poderíamos escrever (e escreveremos, com o auxílio valioso da Sony) uma enciclopédia completa, de A a Z, dos saberes musicais absorvidos, transformados e transmitidos por Luiz Gonzaga, rei do Brasilzão. Sua arte pulsa viva em todas as vertentes musicais locais, mesmo aquelas (como a bossa nova) que lutaram por varrer a brasilidade bruta de Luiz Gonzaga para baixo do tapete.

(Em tempo: a mídia internacional já registra, para lá de Michel Teló, uma onda de valorização do forró nordestino em cidades tão gonzagueiras como… Nova York.)

 

(Saiba mais em “Sony reedita Luiz Gonzaga em CD e digital”.)

 

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